terça-feira, abril 03, 2007

Sobre o tempo, essa inexorável grandeza relativa (e o amor)

Piscou os olhos. Andou pela casa, como se a tivesse visitado em um passado distante. Achou estranho a flor não estar fresca. Havia murchado. Olhou o vaso, irriquieta, pensando ter esquecido da água. Estava muito calor. Matou um botão de rosa, por esquecimento. Sua mãe iria ficar irritadíssima. Afinal, sua obrigação, além de estudar, era também de cuidar das plantas da casa. Por sua culpa, a rosa vermelha estava agora em tom de carmim envelhecido, como um papel enrugado pela chama do fogão. Não se conformava. Lembrava perfeitamente de ter colhido a rosa no jardim de sua vizinha e tê-la colocado no vaso, linda e juvenil. Olhou pela janela. Seria muita cara de pau buscar outra flor no jardim alheio. Foi caminhando em direção à porta, hesitante. Parecia estar esquecendo de mais alguma coisa. Estava vestindo uma camisa esquisita, que não era exatamente sua. Ficou um pouco surpresa. O sono deve ter sido realmente muito pesado. Sorriu. A noite certamente foi boa. Sentou-se na sala, disposta a lembrar o quê tinha acontecido. Foi quando notou um porta-retrato novo em cima da mesa. Era de um senhor grisalho, de ótima aparência. Achou-o parecido com alguém, mas não sabia dizer quem. Sua mãe deveria conhecê-lo. Ou seu pai. Perguntaria a eles depois. Colocou o porta-retrato no lugar. Havia um envelope ao lado. Resolveu abri-lo. A carta já estava rasgadinha na borda. Alguém já o devia ter aberto. Por um momento, hesitou em ler o que estava escrito. Puxou a carta, mesmo assim. Seu nome aparecia como destinatário. Aparentemente, um exame de laboratório. Não sabia ao certo. Muitos números juntos. Ao final, uma frase inacreditável: “expectativa de vida em dois dias, dez horas, trinta e quatro minutos e vinte e um segundos”. Só poderia ser uma piada. Olhou a data. Primeiro de abril de dois mil e setenta e nove. Claro que era uma piada. Por curiosidade, olhou o relógio. Eram dez e quatorze da manhã. Deu uma gargalhada nervosa. Devia ser obra de seu irmão. Ele adora fazer piada com todos. Decidiu ir até a floricultura. Se tivesse sorte, poderia voltar com uma nova rosa antes de sua mãe chegar do trabalho. Subiu as escadas até o quarto. Estava ofegante. Abriu o armário. Procurou uma calça jeans, mas não encontrava nenhuma. Talvez estivessem para lavar. Pegou um vestido qualquer e colocou-se diante do espelho. Levou um susto. Quase morreu do coração. Não reconhecia seu próprio rosto. Será que havia trocado de corpo com alguém? Será que seus óculos estavam assim tão sujos? Aproximou-se do espelho. Reconheceu seu olhar. De repente, um nó na garganta e uma vontade súbita de chorar. Emocionou-se. Estava velha. Sua pele não possuía mais o viço de antes. Deu-se conta que o corpo também não era o mesmo. Colocou o vestido, mesmo assim. Perfumou-se. Passou batom. Pôs seus brincos de brilhantes, uma pulseira de ouro e diversos anéis, dos quais gostava. Não se conformava por não ter percebido antes. Por não ter feito aquela viagem naquele ano. Por não ter dito aquilo que queria em certa ocasião. Por não ter feito aquilo que desejava fazer em um determinado dia. Às dez e trinta e quatro morreu, sentada na poltrona de seu quarto, em frente à janela. Estava abraçada àquele porta-retrato, cuja fotografia antes não havia reconhecido. Seus últimos pensamentos foram doces. Estava contente por ter lembrado do único e grande amor de sua vida. Daquele senhor simpático e grisalho. Dos filhos que tiveram. Dos episódios tristes e alegres. De sua felicidade grandiosa juntos. E de seu anseio em juntar-se a ele, algum dia, entre as nuvens brancas do céu e o negro infinito do universo.